<i>Noite da Liberdade</i><br>ou o sonho da frente antifascista

Gustavo Carneiro

A Companhia de Teatro de Almada estreia na próxima sexta-feira, 2 de Dezembro, Noite da Liberdade, de Ödön von Horváth. Escrita em 1929-30 e estreada em Berlim no ano seguinte, esta «peça popular» – como lhe chamou o autor – observa com visível preocupação e angústia a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e a incapacidade revelada pelas forças democráticas para se lhe oporem. A história deu-lhe razão. Dramaticamente.

Foto Rui Mateus

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Noite da Liberdade (no original, Noite Italiana) é um texto actual, por mais que tenha sido escrito e levado à cena pela primeira vez há mais de 80 anos. Foi a sua actualidade que levou a Companhia de Teatro de Almada e o seu director e encenador do espectáculo, Rodrigo Francisco, a optarem neste momento pela sua apresentação.

A acção passa-se na Alemanha, na agonia da República de Weimar, mas podia passar-se hoje em muitos países ocidentais. Então como agora, vivia-se um pico particularmente agudo da crise do capitalismo, marcado pelo desemprego galopante e a pobreza crescente. No início da década de 30 do século passado como na segunda década do actual, cresciam impetuosamente as forças de extrema-direita – xenófobas, antidemocráticas, antipopulares, anticomunistas, criminosas. Na peça de Horváth, hordas fascistas marcham descaradamente pela pequena cidade do Sul da Alemanha em que a trama se desenvolve; hoje, na Hungria, na Polónia, na Alemanha, em França, nos países bálticos ou na Ucrânia, milícias neonazis agem com aterradora impunidade. Se em alguns destes países, partidos e organizações de cariz nazi-fascista se encontram já no poder, noutros essa ascensão poderá vir a dar-se em breve.

Mas Horváth não se limita a retratar passivamente a caminhada dos nacional-socialistas até ao poder (que o levaria abandonar a Alemanha em 1933). Ele vai mais fundo e, tanto quanto é possível num texto dramático, fornece algumas explicações acerca do processo que acabaria por conduzir Hitler a chanceler da Alemanha. Na segunda deixa do texto, Martin, jovem operário e revolucionário, responde a um seu camarada: «Os trabalhadores pagam os impostos e os patrões vão minando a democracia o mais que podem. Nada de novo, não é verdade?»

De facto, a ligação íntima entre os nazi-fascistas e importantes sectores do grande capital alemão – excelentemente analisada na obra «Hitler: ascensão irresistível? Ensaios sobre o fascismo», de Kurt Gossweiler (Edições Avante!) – foi determinante para a chegada ao poder do Partido Nacional-Socialista, que soube atrair muitos daqueles para quem os impactos da crise foram mais severos. Da mesma forma que, hoje, «as políticas de intensificação da exploração, de empobrecimento, de promoção da precariedade e do desemprego, de opressão, designadamente de opressão nacional, de estigmatização dos imigrantes, criam campo fértil para a propagação da ideologia xenófoba e racista das forças de extrema-direita e grupos de cariz fascista» (Teses/ Projecto de Resolução Política do XX Congresso do PCP).

O fascismo, longe de constituir qualquer alternativa ao capitalismo, nasce das suas entranhas e de opções concretas dos sectores mais agressivos do grande capital. Nos anos 30 como hoje. Não é cedendo à agenda reaccionária do fascismo que a democracia se defende.

O drama alemão

Tendo como pano de fundo a ascensão do fascismo na Alemanha, Noite da Liberdade debruça-se com particular atenção na resposta das forças democráticas ao reforço da extrema-direita. Personificadas em Martin e no vereador municipal (na peça ambos membros da «Liga Democrata», embora em diferentes facções), estão as duas principais forças de esquerda da época, o Partido Comunista (KPD) e o Partido Socialista (SPD), respectivamente.

As posturas de um e de outro são reveladoras. «Os fascistas organizam as suas paradas pomposas e reaccionárias, com missa ao ar livre e tiro aos pratos e a gente vai assobiando para o lado», insurge-se Martin, contrastando com a complacência do vereador: «De maneira nenhuma se pode afirmar que exista efectivamente um perigo real para a democracia. (…) Enquanto houver uma Liga Democrata, e enquanto eu tiver a honra de presidir à secção local, a democracia pode estar descansada!» Como a história acabou por mostrar, não, não podia...

A figura do vereador é particularmente representativa da evolução do SPD, uma força cada vez mais distante das massas operárias que outrora representara e congregara, que há muito abandonara qualquer perspectiva revolucionária e de construção do socialismo: a aprovação dos créditos de guerra, antes do primeiro conflito mundial, e o papel de primeiro plano que assumiu no esmagamento da sublevação espartaquista de 1919 e no assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que se lhe seguiu, são algumas das mais negras manchas do seu currículo.

O afastamento entre o vereador e Martin acentua-se ao longo da peça, representando o que na realidade aconteceu na época entre socialistas e comunistas. Mas Horváth propõe um final feliz: perante a perspectiva de os nazis agredirem o vereador e os seus partidários, a companheira de Martin, Anna, convence-o a bater-se em defesa dos seus antigos camaradas. O jovem acede: «Se calhar não é lá muito digno da nossa parte (…) deixar que a Comissão Organizadora leve na boca (…). E que sejam os fascistas!» A intervenção de Martin e dos seus apoiantes revela-se decisiva para afastar a ameaça nacionalista, «definitivamente».

A realidade, como se sabe, foi diferente. Mas teria mesmo de ser assim? Dois anos após a chegada de Hitler ao poder, no histórico VII Congresso da Internacional Comunista, Georgi Dimitrov garantia que não, que a classe operária alemã podia tê-lo impedido: «mas para isso deveria ter conseguido realizar a frente única proletária antifascista, deveria ter obrigado os chefes da social-democracia a cessar a sua campanha contra os comunistas e a aceitar as repetidas propostas do Partido Comunista sobre a unidade de acção contra o fascismo». Era seguramente com esta frente que sonhava Horváth, que morreu em 1938, ainda antes de o nazi-fascismo ter revelado toda a dimensão dos seus tenebrosos propósitos e métodos.




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